Uma crise de identidade

Ao longo dos últimos anos fui-me habituando a ler e a ouvir frases como "devolver o Sporting aos Sportinguistas" "o Sporting somos nós" "o Sporting é nosso" e por aí adiante. Mas isto não é de agora, já vem de longe.

Lembro-me que para aí em 2007 quando eu era um membro muito activo do Forum SCP, depois de ler coisas tão despropositadas e reveladoras de um total desconhecimento da história do Sporting, ter resolvido abrir uns tópicos para resumir a mesma, uma coisa feita um pouco à pressa e sem grande rigor, mas que teve algum sucesso e mais do que isso foi aí que começou a germinar a ideia que deu origem à Wiki Sporting. Na altura a minha ideia era explicar, principalmente aos mais jovens, as origens e os caminhos percorridos pelo Sporting até chegarmos aos nossos dias.

O Sporting nasceu em berço de ouro, fruto de um sonho de um menino rico que foi pedir ajuda ao avô para fundar um Clube que ele sonhava que pudesse vir a ser tão grande como os maiores da Europa.

Foi assim que o Sporting teve desde logo as melhores instalações desportivas do País, mas era um Clube de aristocratas numa altura em que a Monarquia dava as últimas, portanto era mal recebido em todos os campos da Capital, em oposição à popularidade do Sport Lisboa, que resultava deste ter sido o primeiro Clube a derrotar os até aí invencíveis ingleses do Carcavelos.

Valeu ao Sporting ter nas suas fileiras gente de qualidade superior, que conseguiu fazer prosperar o Clube e dar-lhe uma dimensão nacional, destacando-se aqui homens como Francisco StrompDaniel Queirós dos SantosMário PistacchiniJúlio de AraújoSalazar Carreira e Joaquim Oliveira Duarte, entre outros.

Os êxitos desportivos foram dando ao Sporting uma crescente popularidade, mas o Clube continuava a ter uma matriz marcadamente elitista e quando nos anos 40 e 50 se percebeu que era fundamental aumentar o numero de sócios que até aí era limitado, foi criado o Conselho Geral (mais tarde Conselho Leonino), onde tinham assento uma elite que detinha o privilégio de indigitar os Presidentes dos órgãos sociais do Clube.

Nessa altura muitos dos dirigentes do Sporting estavam ligados ao regime político vigente em Portugal, mas é sabido que Salazar nunca ligou nenhuma ao Futebol. No entanto com o início das guerras coloniais passou a interessar ao Governo que o povo estivesse entretido e já toda a gente ouviu falar nos três fff (Futebol, Fátima e Fado). Assim as vitórias do clube do povo passaram a interessar ao poder político, pelo que os dirigentes do Sporting deixaram de ter autonomia para defender convenientemente os interesses do Clube, que durante alguns anos foi dirigido quase em regime de comissões de serviço, muitas vezes lideradas por militares, o que somado à crise financeira em que o Clube caiu, em parte resultante da construção do Estádio, deixou o Sporting numa posição de fragilidade em relação a um rival cada vez mais pujante. Foi pois em plena ditadura que o Benfica viveu os seus melhores anos, isto apesar da má fama do Sporting cujos proveitos foram poucos.

Em 1973 já em plena primavera marcelista surgiu João Rocha com um projecto inovador que passava pela criação do primeiro clube empresa do nosso país e curiosamente o seu vice-presidente era um tal de José Roquete. No entanto o 25 de Abril de 1974 fez abortar esse plano.

Entrámos na era do povo é quem mais ordena enquanto a democracia ia amadurecendo e o Sporting sofreu com o estigma de ser o Clube dos fascistas, sendo prejudicado em inúmeros processos com a Câmara de Lisboa e com os sucessivos Governos. Mas o Clube já tinha atingido uma dimensão gigantesca e continuou a crescer ultrapassando os 100 mil sócios, ampliando a sua matriz ecléctica e consolidando o seu património. No entanto no Futebol João Rocha perdeu várias batalhas com Pinto da Costa, numa altura que ficou marcada pela implantação do chamado "sistema", que mais tarde foi definido com notável propriedade por José Roquete, como "um conjunto de maus hábitos instituídos no futebol português".

O abandono de um esgotado João Rocha deixou o Sporting à deriva durante alguns anos e o jejum de títulos no Futebol começou a tornar-se insuportável. Foi então que as elites regressaram a Alvalade, da mesma maneira que tinham regressado a Portugal depois de muitos terem fugido dos ares agitados do PREC. A ditadura dos pobrezinhos mas honestos foi substituída pela dos ricos e muito espertos.

Projecto Roquete foi um regresso às origens de um Clube com uma história marcadamente elitista, e com ele o Sporting passou a ter um novo Estádio, uma Academia, uma SAD e até conseguiu regressar aos títulos no Futebol, mas as gigantescas dívidas daí resultantes deixaram o Clube nas mãos da alta finança e cada vez mais distante dos seus sócios que começaram a ser tratados como clientes, enquanto a incompetência e oportunismo de alguns dirigentes fazia o resto, transformando o Sporting num moribundo.

O povo sportinguista fartou-se e a oposição foi crescendo até que surgiu Bruno de Carvalho, o Presidente sem medo, que afrontou tudo e todos, construiu um pavilhão, devolveu a força do ecletismo ao Clube, criou a Sporting TV, encheu o estádio, entusiasmou os Sportinguistas com a sua entrega e dinamismo, mas nunca convenceu a ala mais conservadora que se escandalizou com o seu estilo agressivo e por vezes de gosto muito duvidoso, embora a maioria primeiro tenha estranhado, mas depois se tenha acostumado, aprovando esmagadormente o novo rumo traçado.

Ganhar passou a ser uma palavra novamente incluída no léxico leonino, mas os sportinguistas que sempre se orgulharam de ter um Clube "diferente" estavam na sua maioria adormecidos e conformados com as suas desventuras, pelo que não estavam preparados para o ritmo apressado do seu novo líder.

A pressão acumulada durante muitos anos começou a fazer-se sentir e a aumentar com o Presidente sempre a insuflar mais ar quente para dentro da panela. O resto resultou das tendências autocráticas de Bruno de Carvalho que me parece ter-se deslumbrado e confundido com a sua popularidade, ao ponto de promover guerras dentro da sua própria casa, ainda por cima quando o prédio do vizinho estava a arder.

"Bruno aperta com eles" foi uma frase que muitas vezes se leu e ouviu da parte dos Sportinguistas e ele apertou tanto que a coisa lhe rebentou nas mãos. "Presidente não nos decepciones" foi outra tirada frequente, mas do lado dos mais precavidos que agora estão realmente decepcionados. Vergonha e decepção são hoje dois sentimentos que assolam a maioria dos sportinguistas.

No meio de toda esta confusão saiu da toca a trupe do "croquete", um grupo sempre ávido pelo regresso à ribalta e principalmente ansioso pela queda do "furacão bruno", enquanto do outro lado os "brunistas" se entrincheiraram na defesa de um líder que os fez acreditar como nunca num Sporting ganhador.

O Clube ficou partido em três. Sim, porque se de um lado estão os que odeiam Bruno, do outro juntam-se os que estão dispostos a ir com ele até ao fim e no meio estamos nós, a esmagadora maioria dos Sportinguistas, cada vez mais tristes, confusos, incrédulos, decepcionados e a cima de tudo fartos de toda esta situação que se arrasta sem fim à vista.

Resumindo e concluindo, os Sportinguistas não estavam preparados para isto. Foram muitos anos a viver orgulhosamente com a nossa diferença, foram muitos anos a conviver com o fatalismo que parecia não nos largar, foram muitos anos a sermos apelidados de "calimeros" na hora de chorar as derrotas. Bruno de Carvalho acordou uma nação gigantesca que estava adormecida, fez-nos acreditar no regresso do Grande Sporting, mas despertou ódios em todo o lado e esqueceu-se que o ADN de um Clube com 112 anos de existência não se a muda à força, até porque para os Sportinguistas há linhas que não podem ser pisadas e a defesa da verdade desportiva é um património que queríamos preservar, mesmo que todos tenhamos a noção que andamos há anos a fio a lutar com forças desiguais e que alguns estejam convencidos que só usando as mesmas armas poderemos lá chegar.

O Sporting só pode ser grande com todos os Sportinguistas e nunca resistirá a uma guerra civil sem tréguas, mas já deu para perceber que  Bruno de Carvalho é um sobrevivente, embora nesta altura eu tenha algumas dúvidas de que ele consiga ultrapassar a sua própria natureza. Tempos difíceis e imprevisíveis se avizinham.






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